terça-feira, 29 de outubro de 2013

O bagulho por lá tá sinistrão

No dia 24/06/2013 o Rio de Janeiro vivia seus dias de descalabro: a favela parecia finalmente ter descido o morro pra tomar as ruas junto da juventude que já se mobilizava em torno da pauta pela redução das tarifas no transporte público. A coisa ficou feia pro governo Cabral. Faltando menos de uma semana pra final da Copa das Confederações no Maracanã (estádio símbolo da cidade símbolo do Brasil), a Cidade Maravilhosa anoitecia com odor de sangue e chumbo.

Esse foi o momento em que o Estado burguês mostrou sua faceta mais implacável: 13 moradores do Complexo da Maré foram assassinados pelos "faca na caveira" do BOPE. Ver uma turba de favelados parando a Avenida Brasil e saqueando lojas era tudo o que não podia acontecer naquele momento. De repente o mundo iria descobrir que as desigualdades sociais no nosso país ainda são gritantes, mesmo os últimos governos tendo alardeado por aí que somos uma "potência emergente". Não, isso não podia acontecer. Não no RJ. Não no meio da Copa das Confederações.

Outro fato, acontecido 23 dias após a Chacina da Maré, merece ser observado...

Durante um protesto na Zona Sul do Rio, lá pelas bandas de Ipanema e Leblon, uma galera arrebentou a vitrine da Toulon (loja que vende artigos luxuosos, pra gente rica que gosta de gastar R$10.000 numa bolsa chique), e espalhou os manequins da loja na rua. Isso parece ter sido um soco no ego da burguesia carioca. No dia seguinte, a cúpula de segurança do estado se reuniu, e prometeu dar um ponto final definitivo na baderna. Durante todo o dia 18/07 as televisões transmitiram as "terríveis e chocantes" imagens de manequins jogados na rua, vandalizados e atropelados pelos vândalos ogros. No final do dia, o Jornal Nacional fez uma comovente reportagem onde mostrava funcionários da loja pintando a mensagem "Só o amor constrói" na frente da loja, e velhas senhoras burguesas distribuindo flores e pedindo paz. Imediatamente o fato passou a ser ironicamente chamado de "Chacina da Toulon"... O ridículo da situação acabou expondo a contradição do Estado burguês: os manequins da Toulon valem mais do que a vida dos 13 mortos da Maré.



Mas o que a Chacina da Maré e a Chacina da Toulon têm a ver?

Antes de responder a essa pergunta, é preciso fazer um raio-x da juventude que foi vanguarda das jornadas de junho. Vários sociólogos e pesquisadores parecem concordar que a camada social que impulsionou inicialmente essas manifestações é formada majoritariamente por jovens com educação superior, mas que não vislumbram boas oportunidades e realização pessoal no mercado de trabalho. Além disso, são jovens que não se sentem representados pelo atual sistema político e pelos partidos que temos aí, ao mesmo tempo em que esperam mudanças profundas tanto na política quanto nos serviços básicos prestados pelo Estado (transporte, saúde e educação). A luta contra o aumento das tarifas serviu como fio condutor que canalizou a revolta dessa galera. Obviamente que eles não são os únicos que foram pras ruas no auge das manifestações. Ao longo daqueles agitados dias de junho, se juntaram a eles tanto a classe média tradicional, quanto setores mais proletarizados e pauperizados do povo. Mas são esses jovens que constituem a espinha dorsal das jornadas de junho.

Fato é que, a massificação das manifestações lhes trouxe uma lição muito importante: temos pouca liberdade pra protestar nas ruas. A PM está sempre reprimindo os protestos de rua, independente da nobreza das reivindicações. Pra quem está na luta há tempos, isso não é novidade alguma. Mas pra quem teve somente agora a primeira experiência de sair de casa pra expressar sua revolta, isso é uma coisa que indigna e põe em xeque a credibilidade das instituições... Especialmente da polícia. Quem esteve presente no ato do dia 17/06 em São Paulo irá se lembrar da palavra de ordem que saía espontaneamente da boca do povo: "que coincidência!!! não tem polícia, não tem violência!!!".

É de se considerar a possibilidade de que a violência policial tenha criado um vínculo de solidariedade - ainda que simbólico e muito frágil - entre esse setor da população e o povo pobre e massacrado da periferia. A expressão maior desse vínculo foi a campanha "Cadê o Amarildo?" que se alastrou de forma incrível pelas redes sociais, e colocou o governo Cabral contra a parede. Pela primeira vez um governo estava sendo questionado nacionalmente por aquilo que o Estado faz todos os dias: exterminar pessoas pobres da periferia (em sua maioria negros e jovens). Igualmente, pela primeira vez a bandeira da desmilitarização da PM saiu dos círculos restritos da intelectualidade de esquerda para se tornar uma coisa discutível pelo conjunto da população.

Não se pode ignorar a pedagogia das ruas. Ela tem o poder de mostrar, mesmo pros mais alienados, que "o bagulho lá tá sinistrão".

Fica como dica de expressão artística dessa conjuntura absurda e surreal, a música "A Maré tá cheia", do coletivo Anarco Funk... Se pá eles conseguiram pegar a essência da coisa toda que tá rolando. Daqui uns anos, quando formos contar essa história pros nossos filhos e netos, é bom que a gente coloque essa música de trilha sonora de fundo.


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