terça-feira, 15 de junho de 2010

De como a África do Sul vendeu-se à Fifa

Publicado no Diário Gauche

Contam os jornalistas sul-africanos que a suíte renascentista escolhida por Joseph Blatter (foto), presidente da FIFA, no Hotel Michelangelo de Sandton, tem um tapete vermelho diante da porta, do tamanho de um campo de futebol, uma “jacuzzi” decorada com estilos africanos e um minibar individual com cubos de gelo da água mineral da marca Levian.

O apartamento se encontra na cobertura de uma das torres do hotel cinco estrelas que domina o distrito econômico mais branco e mais rico de Johannesburgo.

Monarca indiscutível da república mundial do futebol, o coronel construíu sua sucessão a Havelange ao trono da FIFA com os votos da Confederação Africana e a promessa (primeiro, na Alemanha em 2000 e mantida em 2004, com a presença de Mandela) do primeiro Mundial da história do continente negro. Isso explica por que ele é uma figura tão popular na região, a tal ponto que, em um almoço de gala celebrado em Johannesburgo, o presidente da África do Sul, Jacob Zuma lhe outorgou a Ordem dos Companheiros de Oliver Reginald Tambo, uma das mais honrosas do país outorgadas a personalidades estrangeiras. Tambo, junto com Mandela, foi um dos grandes lutadores contra o apartheid.

Vendo esse personagem, nunca falta alguém disposto a encontrar, na magnanimidade de Blatter, pulgas que desmascaram as falhas de sua mastodôntica máquina de ganhar dinheiro. Esse é o caso do semanário sul-africano Mail & Guardian, que nos últimos meses tratou de meter o nariz no grande negócio dos mundiais de futebol, encontrando-se com um muro elástico.

Devido à escassa colaboração do Comitê Organizador Sul-Africano (LOC), dirigiu-se a um juiz, solicitando acesso aos documentos oficiais relacionados aos contratos da Copa do Mundo, em nome da liberdade de informação. Mas, antes mesmo que o tribunal emitisse a sentença, começaram a saltar alguns detalhes embaraçosos.

Antes de tudo, as garantias concedidas pelo governo de Pretória à FIFA no momento da confirmação do Mundial, em 2004, são 17, confirmadas pelos diferentes ministros do Executivo conduzido naquela época por Thabo Mbeki, destroem a soberania do país, como se a FIFA fosse o Fundo Monetário Internacional.

Para começar, tanto a FIFA como suas sociedades e delegações estão isentas do pagamento de impostos. Entre elas a Host, empresa do neto de Blatter que administrou a venda dos ingressos do Mundial, os hotéis oficiais e os pacotes de recepção (ainda que para as federações internacionais e seus amigos assegurasse um desconto de 20% em todos os hotéis).

Não haverá restrição a ninguém quanto à importação e exportação de moedas estrangeiras. Em um país onde ninguém sem um plano de saúde privado pode ser atendido em um hospital, o governo ofereceu ao exército do coronel Blatter cobertura médica total, além de segurança privada 24 horas por dia.

Uma parcela importante das forças da ordem foi comprometida e redirecionada para o que mais urge ao coração do chefe da FIFA: proteger a exclusividade de seus sócios comerciais, os generosos e fidelíssimos patrocinadores em termos de marketing, marcas, direitos televisivos e propriedade intelectual. No caso de controvérsias legais, a África do Sul se comprometeu inclusive a pagar à FIFA uma indenização, além dos honorários dos advogados.

É inútil esclarecer que as causas levantadas contra os falsificadores e os vendedores não autorizados da logomarca do Mundial proliferaram: 450 na África do Sul, 2.500 em todo o planeta. Algumas das ações são realmente ridículas: um pub de Pretória foi acionado por ter pintado em seu próprio teto a Copa do Mundo; uma fábrica de caramelos por ter impresso na embalagem destes uma bola de futebol e a bandeira sul-africana. Os vendedores de bebidas fora dos estádios foram obrigados a transferir para garrafas neutras qualquer bebida que competisse com aquela arquifamosa das borbulhas, que há 40 anos enche as arcas da FIFA.

Contudo, o caso mais retumbante é o da Kulula, linha aérea de baixo custo, que recebeu uma carta de advertência para que retirasse imediatamente a genial publicidade veiculada nos jornais locais em fevereiro: “A companhia não oficial de vocês sabem o quê”.

Segundo a FIFA, era uma emboscada aos direitos do autor, tendo em vista a presença de vuvuzelas, bolas e bandeiras, sobre os quais o governo suíço do futebol pretende ter o copyright absoluto. A coisa apareceu rapidamente no Twitter, desencadeando debates e protestos, bem resumidos por Heidi Brauer, diretora de marketing da Kulula: ´”É uma coisa exagerada acreditar que tudo o que é relativo à Copa do Mundo pertence à FIFA: as vuvuzelas, a bandeira nacional e o futebol pertencem à África do Sul. Parece que, em troca, vendemos os símbolos e a economia ao senhor Blatter".

A Kulula finalmente retirou a publicidade, mas a raiva pelo excesso de poder concedido á FIFA está muito difundida entre as pequenas e médias empresas sul-africanas, que esperavam obter lucros com o grande acontecimento.

Alguém lembra que muitas das ações tentadas pela FIFA há quatro anos na Alemanha ainda estão pendentes (é memorável uma ação contra um padeiro de Hamburgo, que deu a seus pães a forma da Copa do Mundo).

E aqui volta ao jogo o Mail & Guardian, ao qual um juiz da Suprema Corte de South Gauteng reconheceu o direito de ter acesso aos documentos relativos aos contratos. O Comitê Organizador, que pretendia ser um organismo privado, livre da obrigação de transparência, deverá colocar à disposição do semanário, no prazo de 30 dias, a nominata das empresas que obtiveram a concessão dos contratos ganhando milhares de rands (indicando a que preço e sob que modalidade de licitação obtiveram as concessões).

“Negar esses documentos – explicou o juiz Les Monson – permitiria aos organizadores ocultar à opinião pública eventuais casos de corrupção, violação ou incompetência. Torná-los públicos demonstrará, pelo contrário, que não houve nenhuma malversação”.

O diretor do Mail & Guardian, Nick Dwes, diz que também eles, como todos os sul-africanos esperavam o Mundial com ansiedade, mas “essa vitória mostra que a liberdade de informação na África do Sul é uma lei viva e não um pedaço de papel”.

Contudo, hoje [10/6], Blatter abrirá em Johannesburgo, com magnífica pompa, o sexagésimo congresso da FIFA, para confirmar que no ano que vem ele se candidatará a um quarto mandato, já que, segundo ele, ainda não completou sua missão.


Artigo do jornalista Matteo Patrono, publicado quinta-feira passada (10) no jornal italiano Il Manifesto (de esquerda independente), muitas vezes confundido como jornal do velho PCI, dissolvido em 1991 para dar lugar a um partido social-democrata chamado Partido Democrático da Esquerda (PDS, S de Sinistra, esquerda). Este partido detém até hoje o controle do jornal L'Unità, fundado em 1924 por Antonio Gramsci, hoje, com uma linha político-editorial completamente abastardada e desfigurada.


Tradução de Renzo Bassanetti.

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