segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Desafio boliviano: é esquerda ou esquerda

De La Paz (Bolívia) – A direita por aqui agoniza, atestam o andar da carruagem, os observadores, as pesquisas de opinião. Sua voz ainda se escuta, teimosa e afônica, porque é para isso que existem os meios privados de comunicação. Mas para ela, só resta o passado, um passado eivado de vilanias. O presente e o futuro estão na esquerda. Para o bem, para o mau, para o melhor. Espero que para o melhor.

O processo de “cambio” (mudança), sob a liderança do presidente Evo Morales, avança com o apoio decidido dos movimentos sociais, especialmente os povos originários (indígenas) – a maioria dos 9 milhões de habitantes – e a legendária Central Obrera Boliviana (COB).

Depois de consolidado entre os setores historicamente excluídos da área rural, o governo ganha terreno entre a classe média das cidades e nos quatro departamentos (estados) da chamada Meia Lua, os quais, liderados por Santa Cruz, empreenderam no ano passado a rumorosa tentativa separatista, mascarada com a bandeira da autonomia, sob o patrocínio dos interesses do império dos Estados Unidos.

Na última pesquisa da Ipsos Apoyo, Opinión y Mercado, divulgada em 26 de outubro, a dupla do Movimento ao Socialismo (MAS) – Evo e o vice Álvaro García Linera – já é apontada como vitoriosa em sete dos nove departamentos, ou seja, já incluindo dois da Meia Lua – Pando e Tarija. Os números indicaram derrota do MAS somente em Santa Cruz e Beni. No geral, Evo se situa com 58% dos votos válidos e outros três candidatos oposicionistas com 24%, 14% e 3%. São oito na corrida presidencial, os demais não chegam a aparecer entre os votados. As eleições estão marcadas para 6 de dezembro de 2009.

A PRESIDÊNCIA NÃO ESTÁ EM DISPUTA – A pesquisa apenas confirma uma certeza: a cadeira do presidente não está efetivamente em disputa. O governo se empenha, na verdade, para conseguir a maioria do Congresso (atualmente é minoria no Senado), para desatar os nós institucionais do “proyecto de cambio”. A meta seria obter 2/3 na futura Assembléia Legislativa Plurinacional, denominação oficial do Congresso segundo a nova Constituição aprovada em janeiro último.

É inegável o êxito do MAS nos quase quatro anos de governo, apesar das dificuldades impostas, principalmente no ano passado, pelas ricas oligarquias do rico departamento de Santa Cruz, sempre com o apoio do império estadunidense. Seria bastante lembrar a exploração soberana dos recursos naturais do país, especialmente gás e petróleo, em proveito dos mais pobres, numa política agressiva destinada a reverter os índices de miséria do país. Nesse curto tempo logrou também incluir a Bolívia no restrito clube dos países da América Latina que erradicaram o analfabetismo.

Mas não só. Nos chamados indicadores macroeconômicos, tão exaltados nos meios capitalistas, o governo Evo mostra que, também, vai muito bem. Há poucos dias, por exemplo, um informe apresentado aqui em La Paz pelo Fundo Monetário Internacional – o famigerado FMI, que apesar de baleado pela crise do capitalismo, ainda exibe certa sobrevida – situa o país como o primeiro, dentre 31 países da América Latina e Caribe (exclui Cuba), na previsão de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), neste ano – em torno de 3%.

Na campanha eleitoral, os porta-vozes do governo têm apontado como prioridades, nos próximos cinco anos de Evo Morales, além do aprofundamento e ampliação dos programas sociais, a industrialização dos recursos naturais, acrescentando ao gás e petróleo minerais como o lítio, do qual a Bolívia detém as maiores reservas; a construção de obras de infraestrutura, como estradas, uma deficiência muito sentido no país; e também a continuidade da política de integração soberana da América Latina e da luta pelo socialismo, nos marcos da Revolução Democrática e Cultural.


MOVIMENTAÇÃO NAS ENTRANHAS DO PODER – Parece, portanto, que tudo vai bem entre os partidários do processo de “cambio”, tendo à frente o carismático líder Evo Morales Ayma, que acaba de completar 50 anos. Entretanto, nas entranhas do poder, no seio das forças governistas (aqui chamadas oficialistas), começa a germinar uma movimentação política que logo após as eleições pode resultar num novo desafio para a esquerda boliviana.

Tal movimentação é materializada no documento “Historia de la Central Obrera Boliviana y coyuntura actual frente al proceso de cambio”, que subsidia a discussão interna entre os membros da COB e a discussão com o governo. Tal documento já começa a circular pela Internet. Seu autor é o advogado Frank Taquichiri, assessor trabalhista da COB, 42 anos, há cerca de 20 anos vinculado à entidade (especialista em “legislación laboral”, autor de vários livros na área, é credenciado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT).

No documento, o presidente Evo Morales é tratado como “irmão indígena”, sendo lembrada sua condição de líder sindical (dos cocaleiros) e filiado à Central. Mas, basicamente, é defendida uma posição clara: “A COB não pode cometer os mesmos erros que a história nos mostra. O processo de mudança (“cambio”) é um trabalho que incumbe a todos os explorados e excluídos. A COB, se bem já assumiu seu papel histórico, agora deve, além disso, ser protagonista do seu próprio destino e do destino dos trabalhadores em particular e do povo boliviano em geral”.

A que erros históricos se refere? Vamos chegar lá. Até esta parte conclusiva do documento, Frank Taquichiri percorreu um longo caminho desde a insurreição popular de 1952, quando foi criada, com base nos poderosos sindicatos mineiros e sob a direção de Juan Lechin Oquendo, a Central Obreira (Operária) Boliviana, “a entidade matriz e histórica da maior organização e única dos trabalhadores da Bolívia”.

É uma organização sui generis. Além dos mineiros, base da economia e da violenta exploração colonialista/imperialista – lembremos das riquíssimas minas de prata de Potosí -, fazem parte da COB não só os operários dos demais setores, mas também os estudantes e amplos setores populares como os camponeses. Diz o “asesor laboral” da COB: “La historia de la Central Obrera Boliviana es la historia de Bolívia, en los últimos más de 57 años. No se comprendería lo que ocurrió en este país, sin la acción de la COB, sin la acción de los trabajadores organizados, que dieron vida a los momentos más importantes de este tiempo”.

SÃO NESSES “MOMENTOS MAIS IMPORTATES”, numa história de muita luta, vitórias, derrotas e muita repressão, que Frank Taquichiri identifica os erros históricos:

1 – Na Revolução de 1952, depois dos trabalhadores terem vencido o Exército, com o sacrifício de milhares de vidas, os dirigentes operários entregaram o poder de mão beijada (“en bandeja de plata”, como disseram os mineiros) a Victor Paz Estensoro, do então ascendente Movimento Nacionalista Revolucionário, que após medidas progressistas, como a reforma agrária, enveredou-se pelos tortuosos caminhos da conciliação de classes e a traição.

2 – Nos anos 80, logo após o triunfo da União Democrática e Popular, apoiada pela COB, regressa ao poder Hernán Siles Suazo e surge nova oportunidade dos trabalhadores assumirem a co-governança do país, conforme proposta do próprio presidente. “Em uma reunião – conta o advogado no documento – a COB propõe (assumir) 51% (do governo), e Siles pergunta se foi a COB quem ganhou as eleições”.

Não houve acordo, se rompeu o diálogo e a COB passou à oposição, enfraquecendo o governo, o que deu espaço a um golpe da direita. Resultado: 21 anos de governos neoliberais, de entrega dos recursos naturais da nação aos interesses imperialistas e de repressão contra as forças democráticas e populares.

3 – Nas jornadas populares de setembro e outubro de 2003, na chamada Guerra do Gás, os movimentos sociais – com participação destacada da população de El Alto (uma espécie de subúrbio, que na verdade constitui uma cidade de um milhão de habitantes, a maioria pobre, nos morros e altiplanos que circundam La Paz) – impuseram mais uma vez seu protagonismo e derrubaram o governo presidido por Gonzalo Sánchez de Lozada.

Mais uma vez o poder ficou com a chamada classe política, mas a insurreição terminou levando a um “proceso de cambio”, cujo resultado foi a eleição três anos depois de Evo Morales, com o apoio da COB, para a presidência da República.

HOJE, A COB VOLTA A SE COLOCAR A QUESTÃO: ser sustentador do governo ou ser co-governo? “Agora temos um irmão indígena, filiado à COB, que abraçou e fez seu este processo de mudança, com maior razão a COB não pode cometer os mesmos erros”, diz Frank em seu documento. E finaliza: “É a agenda de outubro/2003 que até hoje, se bem se quer desenvolver, termina por não fazê-lo, já que os verdadeiros atores do processo não estão assumindo seu papel protagonista”.

Pergunto: que significa isso, na prática? a COB pode compor o novo ministério, tem quadros preparados para compor uma bancada parlamentar e para aspirar, por exemplo, a presidência da República daqui a cinco anos quando terminará o mandato de Evo?

Frank Taquichiri é cauteloso: “A COB está conversando com o governo, Evo é um hermano, sindicalista, filiado à COB, temos tudo para chegar a um acordo. Quanto a quadros preparados, claro que temos, basta lembrar Pedro Montes, o principal dirigente da COB”. Refere-se ao atual secretário executivo da Central, um mineiro de 44 anos, há quatro liderando o seu Comitê Executivo Nacional (CEN).


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Artigo publicado no blog “Evidentemente” – http://www.blogdejadson.blogspot.com.

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